Texto da obra Walid Sadek, 2003

Jane-Loyse Tissier


Ambos são culpados: o primeiro, pelo véu, e o segundo, pelo desejo absoluto de ir fundo e dar fim à incerteza. Persegue um homem, a quem se prendeu por seu rosto cumulado por incontáveis camadas de desejo e maldade, enrugado por segredos que dificultam ao máximo a leitura. Segue-lhe os passos, dia e noite, procurando -nos detalhes da roupa, na fração dos movimentos, na rapidez dos passos- algum sinal com que tecer as fáceis previsões. Persiste até o pôr-do-sol do dia seguinte e não pára senão exaurido em frente ao rosto descuidado desse homem, e ali permanece resignado: de que alguns rostos carregam histórias e, para sorte nossa, de que não podemos descerrar os seus lacres (E. A. Poe).

Aventura do narrador -embora comece no encantamento de um rosto e termine diante do rosto mesmo, surdo e velado-, sua base é perseguição, aprofundamento, somatório de marcas, decifrar de signos. Na busca dos segredos do rosto, o narrador volta o olhar ao corpo de seu perseguido, buscando indícios que levem à discursividade do rosto e o descubram talvez à interpretação ou a algo mais. Diante do rosto fechado, é preciso evitar a muralha, é preciso achar aberturas no corpo, menos cerradas, sem tanto controle, mas também sem conseqüências imediatas resultantes dessa tentativa de busca. Pois os corpos, se são poderosos como os rostos na diferenciação, são inferiores, contudo, para explicar e organizar a diferença (G. Simmel). Por isso, o desvelar não é contrário do velar, exceto se contiver a desordem. Isto é, o rompimento da ordem. Assim como não há base para uma história em rosto visível, ou em duas mãos ou em um umbigo sem desvelamento.

Desordem é o viver e as palavras que se produzem onde há malentendidos.

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Giotto, O encontro de Joaquim e Ana, c. 1305, afresco, Capela Scrovegni, Pádua.

No tempo da guerra, os rostos se separam dos corpos. Os primeiros permanecem neste mundo como imagens, semelhantes à morte, enquanto que os corpos se transportam feridos para de novo renascer no mundo seguinte. Isto pode ser mera alegação, salvo se talvez for uma glória no marco da investigação sobre os vivos e, particularmente, sobre as imagens no tempo da paz fria.

Na guerra, os urbanos se escondem, e seus rostos se ocultam na guarida dos corredores dentro das casas e na estupidez da escuridão dos esconderijos, onde os corpos se avizinham para esperar e se acumulam para nutrir animosidade e esperança. Na guerra, os rostos voltam a sua origem e fogem assustados até a genealogia. Então abandonam ramo e copa em busca de tronco e raiz. Na viagem de retorno ao esconderijo da família, os rostos se apresentam como condição de todos e abandonam sua singularidade para igualarem-se na forma do medo acolhedor. E isto apesar de haver, na semelhança, promessa de segurança. Mas essa semelhança, enquanto submissão à condição sangüínea, acaba sendo na prática o preço de ter medo da dor. E desse medo forma-se o cerne da guerra e sobre ele se dobra: o medo amontoa os corpos ou os dispõe em fileiras, junta-os em montes ou os distribui em grupos, indistintamente, na condição de que a grossura do medo não atravesse rostos que questionam as vantagens do que está em curso.

Há dois domínios para os rostos na guerra: o primeiro é acolhedor, e seu preço é o marasmo; o segundo é aberto, e sua fiança é o desvelamento. No segundo domínio, os rostos se ligam às ruas da cidade, em simetria que tem por base terra deserta. Pois os rostos desvelados nas ruas são rostos de mártires. Quanto aos rostos dos armados, estes ocultam-se e viram máscaras e barbas espessas e nomes dinâmicos. Só são inteiramente revelados aqueles rostos que, fotografados, são pendurados nas laterais das vias públicas e colados nas paredes dos edifícios. Rostos descolados de seu passado para aderir a um futuro no qual aparecem radiantes aos vivos, portando uma máscara fria. Rostos dizendo que seus corpos agora pertencem a eles, corpos que não conhecem o medo nem o arrependimento, que lutaram, foram feridos e, por fim, resplandesceram no instante mesmo em que se dispersou sua matéria. E tal qual os rostos dos mártires aparecem libertos do viver e do medo dos corpos, assim pois as ruas aparecem libres do movimento incessante da população; eles também aparecem calmos e com traços nítidos, exatamente conforme os engenheiros urbanistas os desenharam nas plantas: vias entrecruzadas, guardadas por homens armados, ainda que percorridas por ratazanas. E quando os rostos desvelados aparecem de seu futuro, aparecem em ruas abertas, sem sinal de vida estável, ou nas passagens, raras e em declive, pelas quais, um a um, corpos atravessam a distância entre a vida e a morte. Corpos que seguimos enternecidos e nos quais percebemos a única e última prova de sua humana existência.

É impressionante a guerra quando se atreve contra os vivos e confisca-lhes rostos e sorrisos e, nisso, acelera o deslocamento dos corpos de seus lugares. E é dura a guerra, e bonita, nos rostos dos mártires: rostos aos quais prometemos, escondidos e armados, não esquecer.


Nos dias de paz, a desconfiança e a dúvida circundam os rostos dos vivos. Parecem ambíguos se não forem comparados aos rostos dos mártires. Parece mais difícil tratá-los por imagens. Carregaram em seus traços o embaraço de continuarem vivos e a impotência de provarem que eles próprios estão voltando do inferno da guerra. Assim pois como a guerra retira dos rostos das vítimas uma âncora para sua alegações, a paz transforma os rostos dos vivos em sinais perdidos sem corpo, pois o corpo do pós-guerra se parece mais com o corpo de Lázaro retornado da morte: é um milagre ou, pelo menos, um acaso estatístico, improvável e injustificável salvo se, talvez, por falta de consistência. Quando a relação entre o corpo e o rosto se arrefece, os vivos tornam-se imagens sem sombra como na história de Adelbert von Chamisso, sobre Peter Schlemihl (1814), que perdeu seu lugar no mundo após vender a sombra ao diabo.

Assim é que a lógica da paz impõe a todos que mostrem seus rostos com os argumentos da presença e provas da neutralidade de seu comportamento, isto é de sua insignificância, condição necessária, sem a qual, todos os rostos se pareceriam híbridos, intrusos como o rosto de Yehud Barak, que se infiltrou na Rua Verdan em Beirute em 10 de abril de 1973, fotografado para a capa da revista Al-Afkar, n. 921, lançada em 10 de abril de 2000: uma farta cabeleira loura e artificial, lábios esticados num sorriso amarelo e olhos fundos abaixo de uma testa plana, cujas rugas foram alisadas numa distorção digital ruim.

Em tempo de paz, o desvelamento dos rostos necessita de estabilidade de traços e de coibição das expressões. Assim, os indivíduos não renovam seus rostos após um longa ausência, mas os velam com os caracteres da neutralidade: rostos novos que nos exigem enorme esforço para que os enquadremos de forma tal que não demonstrem ódio acumulado nem tristeza pela perda de um ente querido. Os rostos da paz se posicionam isolados, perdem seu peso num mundo cauteloso de tanto luto, mundo que os subjugou e, por isso, parecem novos, como se tivessem acabado de acontecer. No tempo de paz, a finura do desvelamento ultrapassa o conteúdo do rosto, que, por sua vez, retrocede olhando para trás, à procura do que lhe pertence.

Barthel Bruyn, o Ancião, tem um quadro em cuja frente o artista pintou o retrato de Jane-Loyse Tissier e, no verso, uma natureza morta constituída de uma caveira coberta por uma mecha fina de cabelo, uma mosca, um maxilar, um candelabro de cobre com uma vela branca apagada e uma folha de papel contendo uma frase em latim que relembra a morte e previne contra a vaidade.

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Barthel Bruyn, o Ancião, Retrato de Jane-Loyse Tissier, 1534, óleo sobre madeira 61x51cm. Rijksmuseum, Otterloo.

Sob a investida da dor, o rosto se desarticula em partes e se distribui em porções sobre um corpo que abandonou o silêncio para proferir jargões ambíguos, de difícil trato, sem ter de lançar mão de doses maciças de anestésicos e entorpecentes. Com a diminuição da dor, o corpo retrai esquecendo o que se passara, pede perdão e uma recuperação tranqüila, irrecusável, que possa devolver-lhe a combinação dos traços e a clareza do discurso. E, se, de modo geral, parecemos incapazes de descrever nossa dor quando a sentimos e nos perdemos nos descaminhos de seu recordar, isto se dá porque a dor é repressora e embriagadora no ato, e fugidia e ingrata, depois de consumada. Esta é a dor visível em mil imagens e fitas gravadas e em mil rastros de feridas cicatrizadas, membros amputados e órgãos comprometidos.


A imagem fotográfica encontra, na consolidação da dor, uma das razões de sua perpetuação e um dos constituintes de seu desdobramento. Nisso, a imagem alega que ela substitui o esforço da objeção e se redime da dificuldade em continuar tal esforço. Ela se adianta continuamente como prova, atestando lugares por onde passamos e nos impõe certas dores que, sem dúvida, foram nossas.


Em tempos de guerra e nos conflitos, as imagens propagam-se e parecem-nos necessárias e fundamentais para podermos atestar nossa contemporaneidade: acompanhamos seus fatos e desastres, comparamo-nos aos signos de sua leitura e nos igualamos na transmissão de suas cenas. Mais do que isso, a imagem talvez seja, nos conflitos, o único documento que separa os vivos dos mortos. Com ela, ver é somente direito dos vivos, e a morte é a parte dos que foram capturados pelas lentes. Por isso, questiono se um libanês tem o direito de contestar a foto de um parente morto pelo fogo das facções que digladiam, ou se um palestino tem o direito de rejeitar propositadamente a imagem de sua casa sendo arrancada por uma máquina de guerra israelense. Penso que nossa desconfiança perante as fotos, nas mais das vezes, é malquista, pois pode tornar-nos indivíduos ressaltados, feito um habitante de Saraievo que só descobre o amor que tinha por sua casa depois das bombas terem arrebentado suas paredes; pode tornar-nos retardatários, frios em aceitar o objetivo insistente de tais fotos, que é lamentar passados idos. Nossas dúvidas, se forem demonstradas, talvez possam ser vistas, espontaneamente, no convite do documento fotográfico para que nos aproximemos da dor, sem conseqüências. É uma questão desconcertante e equivocada.


Os meios de comunicação internacionais publicaram, durante a campanha americana contra o terror no Afeganistão, uma fotografia que foi distribuída pela RAWA, uma organização feminista afegã. Mostra membros do Taliban armados executando uma mulher afegã totalmente coberta por um véu azul, agachada num campo de futebol abandonado. Não sei se a imprensa conseguiu registrar, nessa fotografia, um símbolo definitivo para mobilizar as pessoas na defesa do mais elementar dos direitos humanos, porque não estou certo se defender as afegãs é necessariamente preocupação permanente dos países e dos povos do mundo, de oeste a leste, de norte a sul, do centro ao extremo. Estou inclinado a dizer que o que os meios de comunicação viram naquele retrato da violência é uma amostra que pode ser considerada um modelo da lógica explícita das imagens de execução sem a interferência da dor da vítima. A imagem nos diz que não precisamos lançar mão de nossa imaginação à procura da mulher afegã, nem precisamos dar conta de seu estado em nossa interpretação. Basta-nos do crime que o vejamos como um documento de execução. Assim, teremos certeza mais uma vez de nossa capacidade de censurar. A violência retratada nas fotografias, como nesse exemplo, é representada pelo modo como nos chega em série, carregada de um pedido opressor pela neutralidade. E, se preferimos dizer, de modo geral, que os rostos se avizinham durante os conflitos, então os corpos sem dúvida igualam-se na dor. Mas as fotografias são decisivas na classificação da dor em graus e categorias. Por conseguinte, são violentas na sua distinção entre uma vida e outra. E isto depende dos antecedentes que os rostos e os corpos têm nas fotografias em série e da posição que ocupam na reprodução de seus diversos tipos.

Mas a mulher afegã na foto é totalmente coberta. É assassinada sem que haja dor para, com ela, julgar-se a arbitrariedade de seus executores.

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Execução de afegã, foto tirada em 17/11/1999 e publicada pela organização feminista afegã RAWA no seu sítio virtual www.rawa.org e transmitida pela mídia internacional durante a campanha americana contra o terror no Afeganistão, no outono (oriental) de 2001.


A imagem da dor constrói seu próprio edifício sobre a repetição da exigência da parcialidade e sua perpetuação como recusa ou encantamento. Mas a dor que testemunhamos nas cicatrizes e nos membros que faltam apontam, silenciosamente, para o que ocorrera num mundo que só a reconhece como luto. Sua linguagem são defeitos que afirmam ter passado a dor por aqui, bloqueando a tranqüilidade, eliminando o conforto e fechando certas amplitudes do futuro. Por isso, para que a dor aconteça, ela exige um desvelamento antecipado, isto é, necessita de demarcação: que seja antecedida por um passado, que seja seguida por defeitos, cujos efeitos oprimiriam a vida do indivíduo e do grupo, modificando seu ritmo e diminuindo sua mobilidade. Talvez só então a dor terá uma oportunidade para atravessar, desde o momento e o lugar em que ocorrera, em direção a uma responsabilidade a ser assumida por todos que dela têm conhecimento, mesmo que o número desses não ultrapasse um único indivíduo.


O francês Jacques-Louis David (1738-1825) tem um desenho modesto em nanquim preto, em que capturou, com poucas linhas, a forma da rainha deposta Maria Antonieta a caminho da guilhotina: vemo-la de mãos atadas, vestindo camisola, cabelos cortados, por cima uma capa, lábios cerrados num detalhe notável, como se cobrissem uma boca desdentada. Em nota escrita a mão e anexada pelo artista ao desenho, David observa que acompanhou o último trajeto da rainha deposta, através de uma janela, acompanhado da cidadã Julienne.

No discurso composto pelo desenho e pela nota anexa, nota-se a perturbação de um artista que tem o valor do conhecimento: entre ele a rainha deposta há um olhar do alto da janela que, como sugere a observação aplicada de David, é capaz de separar o artista do destino da rainha. Mas o que aproxima o artista de Maria Antonieta é o conhecimento que ele tem do passado da rainha deposta: as jóias, os ornamentos, as roupas de veludo, além do trono de seda, os desenhos que a trataram como rainha e mãe carinhosa e os boatos que configuraram-na prostituta, bêbada e pervertida. Todo esse passado de que o artista tomou conhecimento tem seu peso retomado no desenho, cuidadosamente retratado nos detalhes do corpo exposto e desvelado da rainha. Não causa estranhamento então o fato de David ter guardado para si esse desenho por toda sua vida, pois é um atestado de dor, a cujo passado o artista foi apresentado, embora tenha preferido, do alto de sua janela, não assumir sua conseqüência. O desenho de David, então, é uma meia-dor. Quanto à segunda metade, tanto o artista como seus auxiliares, conhecidos na época como “generais da arte”, iriam trabalhar para adiá-la em mais de uma exposição, em cujo encerramento, as multidões beberiam a água clara dos seios de estátuas grandes, retratando a irmã dos revolucionários e a mãe da revolução “Marianne”.

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Jacques-Louis David. Maria Antonieta a caminho da guilhotina, 1793, nanquim sobre papel, 14,8x10cm, Louvre, Paris.


“Você [estudante] deve cuidar e precaver-se da mandíbula superior, atando-a firmemente na mesa de operação com uma corda forte ou algemas colocadas sob os caninos superiores. Assim como deve lembrar-se, também, de deixar a cabeça amarrada e o pescoço forçado para cima, para que o animal possa respirar e chorar livremente.”

Andreas Vesalius, 1543.

Vesalius não escreveu recomendações para tortura, nem orientações para experimentar o sofrimento dos outros. Mas estudava o corpo na matéria do corpo. Então quando aconselha os estudantes de anatomia ao vivo a fazerem os primeiros experimentos em porcos e não em cães -pois estes últimos perdem o poder de latir com o aumento da dor, enquanto que os primeiros conservam, especialmente as fêmeas prenhes, as suas vozes-, ele os aconselha pela razaão de que, junto com eles, está sondando a profundeza do corpo em busca de seu limite. De seu zero, se permite a expressão: pois o grito da porca prenhe é reação necessária de um corpo presente que testemunha o trabalho do cirurgião e do movimento profundo de seu bisturi.

Com Vesalius o corpo continua presente, embora numa dor que indica, mas só enquanto elegia, um passado no qual a profundidade da carne era da grossura do universo. Um corpo que se revela a nós para que abracemos sua dor: liga o sujeito ao estendido, no interior de um tempo que se modifica lenta, visual e explicitamente para receber o desenho em perspectiva, em cujo fundo incide o ponto de dispersão, ponto esse, porém, que, na mesma hora, será ponto de partida para o olho do sujeito observador.

A descrição de Vesalius mostra tamanha crueldade fria por estabelecer uma equivalência difícil entre o corpo trazido pela dor e uma testemunha ocular de uma dor trazida pelo corpo. A profundidade é necessária e engendradora do corpo. E nela também a dissecação é exame para a razão. E, se no plano de Vesalius havia algum excesso, este será, em sua dupla tese, o de que a profundidade é mais difícil de conceber e que a dissecação (ao vivo) é mais precisa do que o ato de matar.

Entre Vesalius e a porca prenhe observa-se uma trajetória, cujo valor é a santidade do corpo e cuja vítima é a pele: a pele do corpo que se torna -na dor atroz e sob o bisturi cortante- exatamente como o escudo (ou, como o denominaram os gregos, “thordz”), não por ele ser posto entre o corpo do combatente e o metal das armas, mas por geralmente acompanhar o herói até a morte.


Raras são as imagens que admitem a ausência dos demais sentidos. Sua maioria chama os sentidos, por metonímia, para distribuí-los sob o controle da visão, alcançando-os na primazia do olhar. Por isso a submissão dos outros sentidos parece condição obrigatória para garantir a distância que seda os corpos e transformá-los em objetos visuais.

Não nos aproximamos do corpo com a visão. Pois a imagem prefere superar a razão da dor; por isso é que as imagens da tortura por esfolamento substituem as demais imagens, a fim de estabelecer a prova cabal da necessidade de troca da tateabilidade da pele pensante pelas cores da visão surda. A tortura nas imagens é diferente do que é na realidade. Pois, na verdade, a tortura só objetiva o assassínio acidentalmente. Entretanto, ela tem a intenção de forçar o corpo à confissão, isto é, a rebelar-se contra a própria profundidade. A confissão do corpo, se acontecer, é ruído, seguido por ranço e, depois, por podridão. É o desvelamento do interior e a perturbação do todo na morte do particular. Através dela, a boca retorna ao domínio do físico para pronunciar o dito derradeiro e conformar-se em ser mero canal para o ruído das profundezas.

Mas, nas imagens, a dor não tem voz: Ticiano substitui-a por um violista e por sangue rançoso sendo lambido por cão. Por isso o sofrimento de Marsyas, sendo esfolado, parece corrente de luzes, sofrimento esse que perdera seu ruído nas metonímias dos demais sentidos. E se a iluminação da tortura, em Ticiano, consiste em sombreamento por meio da quietude, então ela é também como iluminação da indecência e do crime em Georges Bataille, iluminação de um enlutado, iluminação do terror de uma cena apresentada, espontaneamente, como fato do qual não temos outra participação senão a do olhar: talvez as imagens de tortura tenham herdado o medo dos médicos de meados do séxulo XIX, temerários de que a anestesia não levasse apenas a uma paralização parcial e momentânea, mas que fosse seguida por uma impotência de lembrar o que ocorrera.

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Ticiano, O esfolamento de Marsyas, c. 1570-1576, óleo sobre tela, 208x203cm, Museu do Estado, Kromeriz, República Tcheca.


Talvez sejam poucos os corpos que têm êxito em brilhar e, em momentos raros, aqueles que atendem às imposições da fotografia. Transportar o corpo para o mundo da fotografia é uma operação de alto custo, que necessita abandonar a profundidade da carne e passar para o campo de encantamento visual. Os corpos dos transexuais (shemale) destacam-se nesta tentativa como corpos-modelos, por atenderem ao mesmo propósito, que é a flutuação do corpo até o esvaziamento da pele. Corpos que, em seu princípio primeiro e na legitimidade de sua razão de ser fundamental, recusam o corpo biológico dado a eles no nascimento como matéria destinada de que não haveria escapatória. É reinventado como “um produto tecnológico, montagem cirúrgica, uma alteração hormonal e uma estrutura erguida sobre uma vontade firme” (D. Le Breton). Em seu projeto, há uma ligação de que a pele é sinônimo de saúde absoluta; nas suas superfícies, não só nos libertamos da flacidez dos membros, como abandonamos nosso sexo também. A saúde absoluta não é tanto o contrário da doença como é o contrário do sexo enquanto ambigüidade e aproximação. A saúde é colonialismo e tirania minuciosa sobre o corpo, e isso num contexto que almeja extrair o desejo dos domínios do convívio e da mistura para inseri-lo nos domínios da confusão estritamente visual.

Assim é que os transexuais tentam desvencilhar-se de suas profundezas. E se admitirmos que isso ocorre por completo e obtém êxito, ou pelo menos segue um caminho que levaria à saúde perfeita, devemos admitir continuamente que seus corpos não são nus, pois a nudez é um estado especial que necessita de tratamento, ou por ocultamento ou por disfarce, já que é capaz de remeter ao que o olho não vê no corpo, isto é, à nudez como uma passagem permanente, em ambos os casos, entre um interior profundo e um exterior extenso; ambos são espectros de desejos individuais ocultos e reunião humana geral onde se localizam as probabilidades da satisfação como também os motivadores da curiosidade e do conhecimento. O desvelamento do corpo é nudez quando não revela o conteúdo da pessoa e não declara seus desejos francamente. Ele é o princípio de uma formação de um conjunto complexo de signos fugidios entre a expressão das formas, os movimentos dos órgãos e as vozes de dentro e de fora. É também um estado desconcertante que estraga a declaração geral de que nossos corpos são de nossa posse apenas, que os grudamos e acreditamos que neles está a condição de nossas diferenças. A nudez é um caos desconcertante para os signos que separam as pessoas entre maridos, operários, mães, soldados, prostitutas, juízes, capitalistas, etc., isto é, em classes e com tudo o que estas supõem de discriminação dos sexos nas suas funções. Assim, a nudez se faz nudez, primeiramente, por misturar verticalmente os seres humanos dispostos em suas classes sociais e, em segundo lugar, por complicar horizontalmente o alinhamento geral através das misturas e suposições do oculto.

Em ambos os casos, os corpos dos transexuais, como o de Najila, remetem a algo parecido com a impotência do desnudar, pois eles, ao misturaram os signos de ambos os sexos reunindo a maleabilidade, a fragilidade e a dualidade, tendo a função dos homens e o estado das mulheres, parece que transcendem o corpo como uma ocorrência biológica obrigatória, calculada e separada do corpo como uma formação construída sobre aproximação dos outros. Parecem esquecer em suas peles as exigências de seus âmagos, vestindo sua pele como uma vestimenta comum sobre cuja superfície flutuam os signos dos desejos desvelados e nítidos. Por isso Najila não precisa ocultar a nudez, pois ela não tem profundidade, em que habitam necessidade, desejos ou pecados. Ela não precisa pertencer declaradamente a nenhuma classe que a impeça de um desmantelamento individual alegado: a roupa dos transexuais é sua nudez, e é sua pele vista, e, no produto de sua tateabilidade especular, está a sua individualidade.


Não veremos o futuro de Najila. Dela temos uma única imagem, diante da qual suplicamos aos deuses para que façam cair, de sobre nós, o mal do tempo e sua única lei, em que estão “a pequena velhice do cansaço e o grande cansaço da velhice” (V. Jankélévitch).

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O transexual Najila, www.bobstgirls.com.


Mona Hatoum tem um trabalho fotográfico em cores intitulado As costas de Van Gogh. Nele vemos as costas peludas de seu marido, cobertas com espuma de sabão numa construção ornamentada, que as mãos da artista quiseram que dialogasse com os desenhos de Van Gogh. A fotografia de Hatoum talvez não seja merecedora de comentários se não envolvesse o perigo de ser levada para um documento a respeito da altruísmo absoluto do corpo. O corpo do marido oscila entre pertencer ao mundo dos humanos civilizados -e isto é guiado pelo título da foto que esconde a pele peluda na sombra do esplendor de um artista dedicado- e o peso de sua presença desconcertante que é trazida sem clemência pelos vestígios do toque de mãos e dedos. Esse homem, mesmo que só se veja dele as costas, é presente por seu corpo marcado pelos traços da barbárie. Sendo o cabelo uma vestimenta primitiva, com que nos cobrimos e nos protegemos dos agentes da natureza, devemos livrar-nos dele conforme formos aproximando-nos da civilização ou buscarmos uma natureza a ser culturalmente reproduzida. Por isso, o cabelo carrega em seu volume marcas de primitivismo, e é por isso também que as modelos desfilam nuas no final de Prèt-à-porter, filme de Robert Altmann, vestidas de suas peles lapidadas, que declaram sua aliança com as regras da cultura, negando o sexo e ultrapassando a tateabilidade. O que as mãos da esposa fazem ao produzir a espuma de sabão é alegar que os corpos são primitivos ou não. Isto é, que os corpos, especialmente aqueles que não combinam com a altura da fotografia, não atraem a vista com a mesma intensidade com que eles nos pedem para calar os olhos e sobrepor a tateabilidade à visão. A pele peluda do marido, que brilha debaixo do sabão espalhado com dedos hábeis, nos diz que a vida da maioria gira em torno da delicadeza, vida que o mundo das fotografias naturalmente não observa, onde poucos corpos merecem ser fotografados e raras são as pessoas cuja pele seja suave. Mas, na presença da delicadeza, a delicadeza do outro, volta um corpo que dele esquecemos, para sermos desconcertados por sua pele evidente, que por longo tempo evitamos, e então nos lembramos, como diz Bilal Khbeiz, de que a delicadeza é virtude dos bárbaros, que devemos evitá-la em um mundo que só se alimenta de fotografias.

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Mona Hatoum, As costas de Van Gogh, 1995, fotografia em cores, 38x50cm, Tate Gallery, Londres.


No toque a vista se apaga e na visão os olhos se põem: oculta a mão direita da mesma forma como suprime a tela em que pinta. Suspende seu poder como pintor para que nos aproximemos de suas costas nuas e as recebamos em pele, carne e cuecas brancas, simples, que cobrem seu traseiro e quadris. Mostra as costas frias e quentes e espera. Há em seu meia-volta uma generosidade desconcertante que nos clama a abandonar a interpretação ocular e o aprofundamento insinuante. Isto é, há nele um convite para flutuar na superfície das costas entre o olhar na profundeza dos símbolos e o vagar no rastro dos signos. Um convite de aproximação que chama os olhos a esticarem-se na forma de dedos que buscam uma tateabilidade equivalente à cegueira. A visão, pois, se tocar seu objeto, é equivalente, no sentido, à suavidade do toque. Por isso só os cegos riem de verdade.

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Avigdor Arikha, Auto-retrato de costas e com cuecas, óleo sobre tela, 73x60cm, 1981, Ms Susan Lioyd, Nassau, Bahamas.


Ela é Isabetta, jovem na véspera do sonho. Nua, de pé sobre um tapete tecido por sua mãe, em rosa e vermelho. Sua pele é esticada sobre um corpo que ainda não vestiu seus sentidos. Seu púbis ainda sem pêlo, traçado por uma linha silenciosa, que mais parece um rasgo de joelho, dobra de antebraço. Sobre o peito, dois mamilos apagados; as mãos na cintura assumindo a audácia da juventude, olhos azuis frios em que a mãe depositara uma infância enigmática. Seu corpo silencioso termina para recomeçar nos tarsos ligados a dois pés pesados, e uma testa cercada por cabelo grosso que pousa feito duas asas. Lá, na extremidade de sua estatura, sinais de feminilidade. Corpo vindo carregado de generosidade provocadora, capaz de atrair até ele quem quisesse, como aquela atriz que arrastou um homem, após ter enganchado o dedo dele no ânus dela; que caminhou, puxando-o, obediente, atrás dela. Não é libertina; isto é fácil. Porém, é daquelas mulheres esforçadas que, como dizia Rilke, esgotaram, por séculos, o amor por inteiro, que disseram as falas de sua miserabilidade e interpretaram todos os papéis. Desenham-nas cansadas, e eu a vejo entre elas torpe, prenhe, dividindo com o tempo seu fluxo numa confidência que só pode ser ouvida pelos cansados.

Talvez não tenhamos o desejo de que nosso corpo seja nosso destino, mas, às vezes, queremo-lo como o de Isabetta, fazedor de destinos.

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Alice Neel, Isabetta, 1934-1935, óleo sobre tela, 26”x43”, coleção de Monika e Jonathan Brand, Portland, Oregon.


Seu torpor é o reforço do seu desejo e a prova cabal de seu favoritismo diante de si mesmo. Seu corpo é amplo, escancarado, morno, viscoso como os desejos de quem se entregou à não-vida aqui. Tórpida, sentada na traseira de uma pequena caminhonete, recebendo os peregrinos, feito ídolo pagão. Um corpo suspenso entre o desinteresse e a ancilose, capaz de trazer para seu interior homens afundados e que pode fragmentar-se sob o bisturi de um estudante vindo do interior à procura de um destino em que possa estabelecer-se.

Mulher sentada a uma mesa de jantar posta para um desconhecido que não chegou. Feições de calma em seu rosto. À sua frente, a mesa arrumada: duas garrafas de vinho, um branco e outro tinto, uma garrafa d'água ornamentada, um buquê de cravos e um pão. Começa a comer. Um lenço branco envolve-lhe o pescoço, os ombros e o peito. Com a mão direita, pega uma ostra do prato e a leva em sua direção.

Na organização dos detalhes, há uma diferença entre o crime e o apetite. O crime é a inveja da ilegitimidade do mundo, enquanto que o apetite é o dialogo que se trava entre o estômago e essa ilegitimidade. A comedora de ostras é um pré-requisito para que se reaprenda a amar os segredos.

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James Ensor, Mulher comendo ostras, 1882, óleo sobre tela, 202x102cm, Konenglieg Museum, Antuérpia.



Tradução do árabe por Michel Sleiman e Safa Alferd Abou Chahla Jubran.

SADEK, Walid. "Jane-Loyse Tissier". Associação Cultural Videobrasil, 2003. Tradução do árabe por Michel Sleiman e Safa Alferd Abou Chahla Jubran.